quarta-feira, 18 de agosto de 2010

" Uma prancha que viaja na Índia" - por João Pontes Meneses



Este texto não fala de especificamente de Yoga, mas quando o li, não resisti a pedir ao autor para o publicar aqui, é um retrato de alguém que viajou pela Índia, que levou uma prancha debaixo do braço e surfou ondas enquanto grupos de indianos se juntavam na beira-mar a aplaudirem-no, perplexos por nunca terem visto ninguém em cima de uma prancha, no meio do mar. É um artigo que usa um jogo e com essa brincadeira, traduz um pouco daquele país, das pessoas, das cidades, das paisagens. E se o relermos duas vezes, conseguimos até encontrar um pouco de Yoga...

"Há dias, como tantos outros, em que os pés sufocados de pantufas negras nos
impedem de esticar os dedos, de sentir a terra.

Aqui, na Índia, não há dias como tantos outros. Talvez por estar de passagem, talvez pela sede de conhecer, para mim não existem esses dias. Como tantos outros!

Junto letras mas a caneta pede um desenho. Lamento, não consigo. Não há um
desenho, há imagens. E são raras as que sobrevivem em papel. Não é por acaso que a caneta pede um desenho, sabendo dos quilómetros que já percorri, imagina a tinta que terá que gastar com palavras. Podia fazer um diário! Facilitava-me a síntese de imagens. Vejo e escrevo. Mas, ninguém gosta de beijar sem química... Ninguém gosta de escrever por obrigação, e por vezes um diário é isso. Obrigação! Risco o diário, sei que vou perder no pormenor mas ganho palavra a palavra.

Duas semanas e já vi tanto! Não sei se consigo escrever, tenho que jogar. Conhecem o jogo
do gostei - não gostei?
É um jogo de viagem. Só precisam de olhar as palavras e desenhar mentalmente imagens:

Gostei da Vila de Mamallapuram e das ondas perfeitas. Gostei de pedalar 40km e visitar o templo da planície. Gostei, junto ao mar de ver as esculturas cravadas em rocha, dedicadas a Shiva. Não gostei da parte direita da praia que serve de casa de banho aos locais. Mas gostei do pontão que por ali estava, sedimentando areia, tornando as ondas perfeitas e rápidas.

Seguindo para sul, gostei de Pondicherry, cidade limpa nos padrões indianos. Gostei da praia de Auroville e do conceito de aqui se poder viver de forma diferente, sem olhar a raças ou religiões, gostei de sentir que há pessoas que acreditam que podem viver em comunidade, com regras diferentes da sociedade, respeitando-a porém. Gostei da aldeia Cristã de Mamapadu,
isolada da índia turística onde não se fala uma palavra de inglês. Gostei de não ver um turista durante 48 horas. Gostei de comer com as mãos vegetais e arroz, servidos em folhas de bananeira. Gostei de entrar na igreja de kanyakumari, no ponto mais sul da Índia. Gostei de sentir proximidade de casa, dentro da casa de Deus.

No sul da Índia encontram-se 80% dos cristãos indianos! E foi por isso que gostei de falar do milagre de Fátima no restaurante da família da Cruz, em Fort Cochin, no Estado de Kerala. Falei para fazer a ponte com Portugal, não por acreditar no milagre. Não gostei de me esquecer de um dos nomes dos 3 pastorinhos. Jacinta pois então! Francisco e Lucia saíram logo à primeira. E eu que até tenho Jacinto como um dos nomes de família. Gostei, ainda em Fort Cochin, de ver a igreja de S. Francisco, construída em 1503 pelos nossos avós. Não gostei dos meus fracos conhecimentos de historia, quando só na Índia soube que o corpo de Vasco da Gama esteve ali enterrado 14 anos, antes de ser levado para Lisboa. Presumo que esteja nos Jerónimos.

Gostei da viagem para as montanhas de Kumily. Outra viagem! Não se viaja
para a Índia, viaja-se na Índia. Lá em cima gostei de seguir as pegadas no trilho dos elefantes: Bosta, folhas e árvores arrancadas. Vão com algumas horas de distância, dizia o guia. Gostei de os ver ao longe, pareciam mais livres que os da savana, talvez pelas montanhas, vales e rios, ou simplesmente porque nunca os tinha visto assim, ao vivo e
livres. Não gostei das sanguessugas a inundarem me o corpo.

Gostei da multidão na praia de Kovalam a ver-me surfar e a bater palmas, não pelo nível de surf mas porque a maioria nunca tinha visto um surfista. Não gostei de ver tantos hotéis junto à praia mas gostei de me rir com alguns “freaks” com a ideia de que estão muito sintonizados com a Índia e destoam completamente deste povo. Gostei das falésias de Varkala e das ondas com vento mas não gostei de me sentir com febre e com poucas forças para surfar.

Agora, gosto de sentir o cheiro das cidades através da janela do autocarro. Não gosto de aprofundar alguns cheiros, porque depressa encontro lixo e cheiro a m... Gosto de caminhar em praias desertas porque são incrivelmente bonitas e fazem-me acreditar que uma educação em sintonia com o ambiente pode diminuir drasticamente os índices de poluição. Não gosto de ver crianças a atirar lixo para o chão imitando os seus pais. Gosto de as ver treinar o inglês comigo com um what's your name e uma gargalhada. Gosto que toquem na minha prancha e façam perguntas sobre todos os desportos aquáticos, esquecendo-se do surf. Na minha estúpida postura etnocêntrica, gosto de saber que a maioria não sabe o que é o surf. Gosto da perícia dos condutores de camionetas, carros e motas típicas de passageiros. Não gosto dos seus escapes a entrarem-me pelos pulmões. Gosto da pronúncia dos indianos a falar inglês, gosto da sua simpatia e das conversas nos
transportes públicos. Gosto deste povo pacífico! A violência tem estado escondida, sei que ela vive num qualquer subúrbio de uma das muitas cidades, mas ainda não vi um gesto agressivo de um indiano, seja muçulmano, hindu ou cristão. Gosto de saber que a
Índia é a maior democracia do mundo. Não gosto de saber que ainda está
longe de ser uma verdadeira democracia.


Gosto das minhas chinelas novas, gosto de viajar de comboio, de dormir no
comboio, de ler e escrever na minha cama sobre carris. Já vamos com 17 horas de viagem. Destino Goa! Queria reler "Um estranho em Goa", do José Eduardo
Agualusa. Pena, já não cabia na mochila. Lê-lo é viajar por esta Região. Agora estou
a 1 hora da próxima viagem, desta vez mais real. É costume dizer-se que quem
vê Goa já não precisa de ver Lisboa. E quem já viu Lisboa o que precisa de ver?

Nestes próximos dias só espero não me sentir um estranho em Goa. E se a estranheza inundar a minha viagem por este Estado da Índia, regresso à costa este, ainda poupada pelas monções, onde dormem as ondas de Mamallapuram. E aí não sei se rezo ou se medito. Apenas sei que pedirei, com algum cepticismo, a um qualquer Deus Indiano que as acorde, soprando-as para a bancada de areia encostada ao pontão.

E com elas acordadas, estranho não me vou sentir."

1 comentário:

Anónimo disse...

Sim Srº. P.Lirico continua no seu melhor.Keep going that´s the way!