terça-feira, 31 de agosto de 2010

Praticantes


Todos os dias, dezenas de pessoas encontram-se na sala de prática, estendem os tapetes lado a lado e descobrem nos primeiros movimentos se o corpo está rijo ou se está solto, se há algum ponto de desconforto, tensão ou dor, se a mente está agitada ou incrivelmente tranquila, se a alma já está desperta ou ainda adormecida pelo stress de um quotidiano citadino.

Uma sala cheia de praticantes, uma plena aula de Mysore Style, onde cada um está concentrado na sua prática, onde cada um faz a série de posturas no seu próprio ritmo respiratório, mantendo um Ujjayi audível. Dezenas de respirações juntam-se e produzem um som forte, coordenado, estável e profundo. Cada um se movimenta com a respiração, cada um se move para determinada postura, puras coreografias individuais que juntas, originam um espectáculo intenso, repleto de viagens internas.

Indivíduos que não se conhecem, praticam lado a lado, não sabem os nomes uns dos outros, mas se cruzarem os olhares, esboçam um sorriso de camaradagem, reconhecem e identificam-se como companheiros neste caminho espiritual que é o Yoga.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

" Uma prancha que viaja na Índia" - por João Pontes Meneses



Este texto não fala de especificamente de Yoga, mas quando o li, não resisti a pedir ao autor para o publicar aqui, é um retrato de alguém que viajou pela Índia, que levou uma prancha debaixo do braço e surfou ondas enquanto grupos de indianos se juntavam na beira-mar a aplaudirem-no, perplexos por nunca terem visto ninguém em cima de uma prancha, no meio do mar. É um artigo que usa um jogo e com essa brincadeira, traduz um pouco daquele país, das pessoas, das cidades, das paisagens. E se o relermos duas vezes, conseguimos até encontrar um pouco de Yoga...

"Há dias, como tantos outros, em que os pés sufocados de pantufas negras nos
impedem de esticar os dedos, de sentir a terra.

Aqui, na Índia, não há dias como tantos outros. Talvez por estar de passagem, talvez pela sede de conhecer, para mim não existem esses dias. Como tantos outros!

Junto letras mas a caneta pede um desenho. Lamento, não consigo. Não há um
desenho, há imagens. E são raras as que sobrevivem em papel. Não é por acaso que a caneta pede um desenho, sabendo dos quilómetros que já percorri, imagina a tinta que terá que gastar com palavras. Podia fazer um diário! Facilitava-me a síntese de imagens. Vejo e escrevo. Mas, ninguém gosta de beijar sem química... Ninguém gosta de escrever por obrigação, e por vezes um diário é isso. Obrigação! Risco o diário, sei que vou perder no pormenor mas ganho palavra a palavra.

Duas semanas e já vi tanto! Não sei se consigo escrever, tenho que jogar. Conhecem o jogo
do gostei - não gostei?
É um jogo de viagem. Só precisam de olhar as palavras e desenhar mentalmente imagens:

Gostei da Vila de Mamallapuram e das ondas perfeitas. Gostei de pedalar 40km e visitar o templo da planície. Gostei, junto ao mar de ver as esculturas cravadas em rocha, dedicadas a Shiva. Não gostei da parte direita da praia que serve de casa de banho aos locais. Mas gostei do pontão que por ali estava, sedimentando areia, tornando as ondas perfeitas e rápidas.

Seguindo para sul, gostei de Pondicherry, cidade limpa nos padrões indianos. Gostei da praia de Auroville e do conceito de aqui se poder viver de forma diferente, sem olhar a raças ou religiões, gostei de sentir que há pessoas que acreditam que podem viver em comunidade, com regras diferentes da sociedade, respeitando-a porém. Gostei da aldeia Cristã de Mamapadu,
isolada da índia turística onde não se fala uma palavra de inglês. Gostei de não ver um turista durante 48 horas. Gostei de comer com as mãos vegetais e arroz, servidos em folhas de bananeira. Gostei de entrar na igreja de kanyakumari, no ponto mais sul da Índia. Gostei de sentir proximidade de casa, dentro da casa de Deus.

No sul da Índia encontram-se 80% dos cristãos indianos! E foi por isso que gostei de falar do milagre de Fátima no restaurante da família da Cruz, em Fort Cochin, no Estado de Kerala. Falei para fazer a ponte com Portugal, não por acreditar no milagre. Não gostei de me esquecer de um dos nomes dos 3 pastorinhos. Jacinta pois então! Francisco e Lucia saíram logo à primeira. E eu que até tenho Jacinto como um dos nomes de família. Gostei, ainda em Fort Cochin, de ver a igreja de S. Francisco, construída em 1503 pelos nossos avós. Não gostei dos meus fracos conhecimentos de historia, quando só na Índia soube que o corpo de Vasco da Gama esteve ali enterrado 14 anos, antes de ser levado para Lisboa. Presumo que esteja nos Jerónimos.

Gostei da viagem para as montanhas de Kumily. Outra viagem! Não se viaja
para a Índia, viaja-se na Índia. Lá em cima gostei de seguir as pegadas no trilho dos elefantes: Bosta, folhas e árvores arrancadas. Vão com algumas horas de distância, dizia o guia. Gostei de os ver ao longe, pareciam mais livres que os da savana, talvez pelas montanhas, vales e rios, ou simplesmente porque nunca os tinha visto assim, ao vivo e
livres. Não gostei das sanguessugas a inundarem me o corpo.

Gostei da multidão na praia de Kovalam a ver-me surfar e a bater palmas, não pelo nível de surf mas porque a maioria nunca tinha visto um surfista. Não gostei de ver tantos hotéis junto à praia mas gostei de me rir com alguns “freaks” com a ideia de que estão muito sintonizados com a Índia e destoam completamente deste povo. Gostei das falésias de Varkala e das ondas com vento mas não gostei de me sentir com febre e com poucas forças para surfar.

Agora, gosto de sentir o cheiro das cidades através da janela do autocarro. Não gosto de aprofundar alguns cheiros, porque depressa encontro lixo e cheiro a m... Gosto de caminhar em praias desertas porque são incrivelmente bonitas e fazem-me acreditar que uma educação em sintonia com o ambiente pode diminuir drasticamente os índices de poluição. Não gosto de ver crianças a atirar lixo para o chão imitando os seus pais. Gosto de as ver treinar o inglês comigo com um what's your name e uma gargalhada. Gosto que toquem na minha prancha e façam perguntas sobre todos os desportos aquáticos, esquecendo-se do surf. Na minha estúpida postura etnocêntrica, gosto de saber que a maioria não sabe o que é o surf. Gosto da perícia dos condutores de camionetas, carros e motas típicas de passageiros. Não gosto dos seus escapes a entrarem-me pelos pulmões. Gosto da pronúncia dos indianos a falar inglês, gosto da sua simpatia e das conversas nos
transportes públicos. Gosto deste povo pacífico! A violência tem estado escondida, sei que ela vive num qualquer subúrbio de uma das muitas cidades, mas ainda não vi um gesto agressivo de um indiano, seja muçulmano, hindu ou cristão. Gosto de saber que a
Índia é a maior democracia do mundo. Não gosto de saber que ainda está
longe de ser uma verdadeira democracia.


Gosto das minhas chinelas novas, gosto de viajar de comboio, de dormir no
comboio, de ler e escrever na minha cama sobre carris. Já vamos com 17 horas de viagem. Destino Goa! Queria reler "Um estranho em Goa", do José Eduardo
Agualusa. Pena, já não cabia na mochila. Lê-lo é viajar por esta Região. Agora estou
a 1 hora da próxima viagem, desta vez mais real. É costume dizer-se que quem
vê Goa já não precisa de ver Lisboa. E quem já viu Lisboa o que precisa de ver?

Nestes próximos dias só espero não me sentir um estranho em Goa. E se a estranheza inundar a minha viagem por este Estado da Índia, regresso à costa este, ainda poupada pelas monções, onde dormem as ondas de Mamallapuram. E aí não sei se rezo ou se medito. Apenas sei que pedirei, com algum cepticismo, a um qualquer Deus Indiano que as acorde, soprando-as para a bancada de areia encostada ao pontão.

E com elas acordadas, estranho não me vou sentir."

domingo, 15 de agosto de 2010

"Practice, practice... and all is coming"




As primeiras lições que aprendemos com o Yoga, é que esta filosofia se baseia na ideia de nos mantermos no momento presente, que o passado e o futuro nos podem limitar, de tal forma, que passamos a uma vida sem sentido. A única coisa que temos, é este mesmo instante e é um período de tempo com poderes extraordinários, mas para os activar, há que nos mantermos no já conhecido, "aqui e agora".

Se enquanto estamos em cima do tapete, vamos visitar as memórias do passado ou nos permitimos passear com a imaginação, para a construção de um futuro, falhamos a primeira aprendizagem que o tapete nos oferece, o estarmos presentes em cada respiração e em cada movimento. Esta noção do presente, implica uma maior concentração e em última instância, pretende que cheguemos a um estado de meditação.

A prática de Yoga, é o espelho da nossa vida e a nossa vida serve de medida para tomarmos consciência, do nível em que está a nossa prática, ambos andam de mãos dadas, ambos Yoga e Vida são semelhantes, se não mesmo iguais.

Na hora de subirmos ao tapete e de ali ficarmos, as duas horas de prática, encontramos e reencontramo-nos connosco mesmo. É como se conseguíssemos accionar um botão de pausa, onde tudo se torna mais lento, mais profundo e mais verdadeiro, onde as máscaras caem, onde sentimos a nossa alma. Para aproveitarmos isto, a mente precisa de estar focada. Focada no que fazemos e mesmo que os pensamentos continuem a teimar em aparecer, há que vê-los como meros pensamentos, sem nos identificarmos com nenhum, sem que estes nos consigam remover do tapete e levarem-nos para os mais diferentes palcos do passado e do futuro.

A vida já é suficiente complicada, nem sempre estamos felizes, nem sempre há harmonia, há leveza, estabilidade, é preciso que nos libertemos das amarras dos padrões de pensamento e de comportamento e com uma nova atitude, irmos aproveitando o nosso Yoga para fazermos, o exercício de nos mantermos no presente. De nos mantermos mais verdadeiros e mais coerentes. É tão fácil, andarmos presos nas recordações do passado, os bons e os maus momentos, todos aqueles retratos que correspondem a determinada emoção ou sentimento e por outro lado, deixarmo-nos ir, oh sonhadores, pelas construções mentais de um futuro mais positivo ou não, criarmos toda uma série de novos acontecimentos, ilusórios ou não. Mas quando estamos constantemente assim, perdemos o momento, perdemos o presente!

Não estamos a escrever, que o Yoga nos diz que não podemos relembrar o passado ou que não podemos nos imaginar no futuro, não, o que escrevemos, é que embora recordar ou projectar seja humano, não nos devemos identificar ou agarrar ao que já vivemos ou o que pretendemos viver, porque ambos nascem do presente e somos responsáveis, os únicos responsáveis pela condução da nossa vida. A cada instante temos a oportunidade de mudar a trajectória da nossa vida e muitas vezes o momento passa-nos despercebido, porque andamos a passear no nosso quadro mental, andamos a perder tempo com o que já foi vivido e com o que desejamos viver. Mas a vida é feita do agora, esta vida maravilhosa que cada um de nós têm, é feita de nos sentirmos presentes, conscientes e responsáveis.

E a famosa frase, " practice...practice... all is coming! ", que foi dita inúmeras vezes por este grande mestre e figura incontornável da história moderna do Yoga, Shri K. Pattabhi Jois, mostrava que o fundamental é estarmos aqui, é subirmos ao tapete como à vida e nos mantermos no momento, dando o nosso melhor, o resto, o resto naturalmente acontecerá.

* KPJAYI, em Mysore